its a long way

Agua Viva

Vi que a menina em mim morria. E eis-me aqui sem menina dentro de mim. Na minha escuridão enfim treme o grande topázio, palavra que tem luz própria. Construo algo isento de mim e de ti - eis a minha liberdade que leva à morte. A morte apaga os traços de espuma do mar na praia.
Luto por conquistar mais profundamente a minha liberdade de sensações e pensamentos, sem nenhum sentido utilitário: sou sozinha, eu e minha liberdade. E é tamanha a liberdade que pode escandalizar um primitivo. Minha liberdade pequena e enquadrada me une à liberdade do mundo. Estou asperamente viva. Estou mal, e mal viva. A vida mal e mal me escapa embora me venha a certeza de que a vida é outra e tem um estilo oculto. Minha essência é inconsciente de si própria e é por isso que me obedeço. Ouve-me, ouve o meu silêncio. O que falo nunca é o que falo e sim outra coisa. Capta essa outra coisa de que na verdade falo porque eu mesma não posso. Lê a energia que está no meu silêncio.
Deixo oculto o que precisa ser oculto e precisa irradiar-se em segredo. Calo-me. É que no domínio mais leve da fala quase não sei falar. Estou pronta para o silêncio grande da morte: vou dormir. E eu trabalho enquanto durmo porque é então que me movo no mistério.
Antes de me organizar, tenho que me desorganizar internamente. Para experimentar o primeiro e passageiro estado primário de liberdade. Da liberdade de errar, cair e levantar-me.
Levantei-me. O tiro da misericórdia. Porque estou cansada de me defender. Sou inocente. Até ingênua porque me entrego sem garantias. Nasci por Ordem. Respiro por Ordem. Não tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que é tão difícil. Daqui a pouco a Ordem vai me mandar ultrapassar o máximo. Ultrapassar o máximo é viver o elemento puro. Tem pessoas que não agüentam: vomitam. Mas eu estou habituada ao sangue.
Abro o jogo. Só não conto os fatos da minha vida: sou secreta por natureza. Os fatos da vida são como o limão na ostra? Não gosto quando pingam limão nas minhas profundezas e fazem com que eu me contorça toda. Eu agüento porque sou forte: comi minha própria placenta. Mas sinto que vou pedir para que os fatos apenas escorram sobre mim sem me molhar.
Sou tabu para mim mesma, intocável porque proibida. E não conheço a proibição. Minha própria força me libera, essa vida plena que se me transborda. No meu mundo pouca liberdade de ação simultaneamente a uma lei onde lido com o oculto. À direção de minha existência dou uma significação oculta que me ultrapassa.

Um dia disseste que me amavas. Finjo acreditar e vivo, de ontem para hoje, em amor alegre. Mas lembrar-se com saudade é como se despedir de novo. Como sinal de revolta apenas uma ironia sem peso e excêntrica. Tem um lado da vida que é como no inverno tomar café no terraço dentro da friagem e aconchegada na lã. Mas quase nos entendemos nesse leve desencontro, nesse quase que é a única forma de suportar a vida em cheio, pois um encontro brusco face a face com ela nos assustaria, espaventaria os seus delicados fios de teia de aranha. Nós somos de soslaio para não comprometer o que pressentimos de infinitamente outro nessa vida de que te falo. E eu vivo de lado - lugar onde a luz central não me cresta.
Minha verdade faísca como um pingente de lustre de cristal. Minha verdade espantada é que eu sempre estive só de ti e não sabia. Agora sei: sou só. Eu e minha liberdade que não sei usar. Grande responsabilidade da solidão. Quem não é perdido não conhece a liberdade e não a ama. Quanto a mim, assumo a minha solidão. Que às vezes se extasia como diante de fogos de artifícios. Sou só e tenho que viver uma certa glória íntima que na solidão pode se tornar dor. E a dor, silêncio. Guardo o seu nome em segredo. Preciso de segredos para viver. O que saberá de mim é a sombra da felcha que se fincou no alvo.

Vou parar. Talvez volte ou talvez pare por aqui mesmo para sempre. Eu, que nunca sou adequada. Que não sei usar amor: às vezes me arranha como se fosse farpas."

Lispector, Clarice. Agua Viva.

Um comentário:

Gisele Freire disse...

Adoro a Lispector!
Acho que já está na hora de começar divulgar este blog :)
bj
Gi